Em exercício recente, nós debruçamos sobre as principais narrativas em torno da desigualdade brasileira para uma formação interna do Instituto Pólis. Não foi exatamente uma surpresa identificarmos a predominância da renda no centro do debate, seja em veículos de mídia ou em estudos acadêmicos. Nosso objetivo com esse estudo era compreender como o Direito à Cidade [1] pode contribuir nas leituras das desigualdades e ser uma ferramenta de luta para diminuir as distâncias entre os cidadãos.
Utilizar a renda como um termômetro para medir as distâncias entre os cidadãos é importante, mas insuficiente. E nesta semana em que vivemos o 20 de Novembro [2], mais do que falar sobre a complexidade das desigualdades, precisamos identificar os parâmetros assumidos no desenho da “cidade ideal”.
Assim, dar alguns passos para trás para compreender para quais sujeitos as cidades foram produzidas é fator fundamental para entender a sofisticação do projeto de exclusão. O mundo ocidental foi (e ainda é) pensado a partir da ideia de homens-ideais como o Homem Vitruviano e o Modulor, dando poucas brechas para o diverso, o que retira a neutralidade da produção do espaço. Isto é, o homem ideal, e portanto a cidade ideal, tem um único gênero, raça e sexualidade que regulam tudo, inclusive nosso imaginário.
“Não é necessário ser um especialista em arquitetura ou anatomia para deduzir que a medida do modulor aludia ao corpo de um homem caucasiano de 1,83 metros que aparecia constantemente nos filmes de Hollywood.“ - Arellano (2019)
É com base nesse ideário masculino e caucasiano (do qual o Modulor é apenas uma das expressões) que grande parte do mobiliário, da arquitetura, dos espaços, mas sobretudo dos lugares (políticos, físicos e sociais) foram pensados ao longo do tempo.
Se o imaginário - e, consequentemente, a concepção de lugar - foi feita através desse modelo branco e masculino, tido não só como ideal, mas sobretudo como “universal”, qual é a cidade construída e possível para os corpos negros? Quem está no centro e quem está à margem? O Centro aqui entendido como uma leitura mais ampla do que a de um ponto no mapa, como de uma localização de poder em relação a quem está fora.
Historicamente, a cidade é um dos espaços de expressão para opressões sistêmicas às vidas negras e querer incluí-las neste mesmo modelo de cidade, sem questionar sua lógica, é reproduzir violências. Reivindicá-la nesses termos não é combater as desigualdades urbanas, pois a concepção do lugar adequado para os corpos dá condição para os mecanismos de expulsão e extermínio.
Na vida prática, como a cidade se tornou mais um campo para a reprodução dessas desigualdades? São muitas as leituras possíveis, mas vamos começar com onde e como moram os negros no Brasil urbano.
No processo de urbanização das cidades brasileiras, onde vive cerca de 80% da população,[3] a segregação é a regra. Esta segregação é racial e de classe, o que não significa que sejam grupos diferentes, já que 75% das pessoas que compõem as menores faixas de renda são negras.
Ou seja, como nos ensina, Flávio Villaça (2011), há em nossas cidades um território que capitaneia a maior parte dos investimentos públicos, um lugar normatizado, com grande oferta de emprego, serviços, habitação e (às vezes) transporte público, mas cujo valor da terra e as regras de mercado permitem o acesso majoritário (quase exclusivo) de apenas um determinado grupo: pessoas brancas, de alta renda e grande capital político.
Em São Paulo, temos alguns exemplos desses territórios, como o distrito de Moema, em São Paulo, localizado na região que apresenta historicamente os melhores indicadores do Mapa da Desigualdade da Cidade de São Paulo [4] e onde, segundo o mesmo mapa de 2019, apenas 5,8% dos habitantes são negros [5]. Estruturas similares podem ser encontradas na região da Zona Sul do Rio de Janeiro (RJ), da Barra/Ondina em Salvador (BA), da Aldeota em Fortaleza (CE) ou da Boa Viagem em Recife(PE), por exemplo.
Por outro lado, como são os territórios às margens e como se vive nestas localidades? São áreas marcadas pela ausência de equipamentos e serviços públicos [6] e que, muitas vezes, são confundidas como áreas ausentes de Estado, o que não é verdade. O Estado se faz presente de forma militarizada ou como agente de negociação da política do favor, por exemplo (Rolnik, 2015). São lugares onde “o caminhão dos correios não entra, mas do BOPE sim”, como relata Wallace, morador do Vidigal, no Rio de Janeiro. E é exatamente nessas regiões que os tiros cotidianos têm ocorrido na capital fluminense.
E embora esta análise de macro estruturas socioterritoriais seja importante para entender o lugar de cada corpo na cidade, o pensamento dicotômico que entende desigualdades como uma relação entre o ‘centro e a periferia’ como distâncias medidas em quilômetros é tão insuficiente quanto olhar apenas para a renda. Primeiro porque, como diz Milton Santos “o centro do mundo está em todo lugar. O mundo é o que se vê de onde se está ”.
Segundo, porque mesmo em áreas ditas infraestruturadas, quando vistas em uma escala mais aproximada, abrigam territórios “marginalizados” que podem ter uma escala pontual, como ocupações, cortiços e pequenas favelas, ou em escala mais estrutural, como é o caso das favelas do Vidigal e da Rocinha, por exemplo, que estão na zona sul do Rio de Janeiro.
E, por fim, porque mesmo o deslocamento para localizações “privilegiadas” não garantem cidadania para os corpos inseridos em uma lógica mais ampla de subordinação, que não só a territorial. A experiência de morar no centro de São Paulo e estar a minutos de um equipamento público de saúde não garante um acesso minimamente adequado a este serviço, visto que mulheres negras recebem menos anestesia (Brasil, 2011) durante procedimentos médicos do que mulheres brancas, por exemplo.
A verdade é que muito se fala em territórios negros nas cidades, mas a presença negra, sobretudo em regiões metropolitanas, está em toda parte. Seja em condição de moradia, de passagem, de ocupação, ou de disputa da rua. As periferias, por exemplo, têm operações funcionais dentro do sistema capitalista. Dentre elas o de um “território de reserva capaz de ser capturado no momento certo” (Rolnik, 2015), seja para a construção de um linha de transporte público, como o BRT de Fortaleza (Iacovini, 2017), ou de um hospital público em uma área destinada pela legislação municipal como uma área de habitação de interesse social, como é o caso da remoção de aproximadamente 200 famílias do bairro dos Campos Elíseos, no centro de São Paulo.
O Brasil, que, segundo Lilia Schwarcz (2019) "fez com que a linguagem da escravidão se impusesse entre nós e com grandes consequências porque ela naturaliza a diferença”, e assim, institui a violência como norma nas favelas e morros. Seja em forma de assassinatos como o de Ágatha Félix, uma garota de 8 anos moradora do complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, que morreu com um tiro nas costas enquanto voltava pra casa. Na negligência política na implementação da rede de água e esgoto, que naturaliza a sujeira e a possibilidade de contaminação nos arredores das moradias populares. Em forma de despejos e remoções forçadas da população negra da área central, reforçando o projeto de imobilidade que ilha a população negra no exílio das periferias (Santos, 1990), forçando-a a atravessar a cidade por cerca de 3 horas. Ou ainda no uso da cidade como espaço de disputa para os trabalhadores informais, como o caso dos entregadores de aplicativo que dormem nas praças (e que não contam sequer com banheiros públicos) para garantir entregas e economizar nos deslocamentos, assim como os ubers que trabalham 12h sentados dentro do carro, imersos no trânsito das metrópoles brasileiras.
Todas essas violências são mensagens atravessadas no cotidiano da cidade para dizer que o corpo negro está fora do lugar, porque em muitas dessas violências o endereço é este corpo.
Assumir o papel de falar, escrever e produzir leituras sobre essa realidade é fundamental para criarmos análises e plano de ações reais que caibam nas nossas vidas, nas nossas práticas e nas nossas intenções. Assumir essa cidade desigual, privilegiando as leituras das vivências negras é um movimento de deslocamento do campo do denuncismo, onde se des-hierarquize leituras da produção da cidade entre científicas e emocionais, universal e específico. A própria assimetria na narrativa do desigual e das cidades, impactam na assimetria no acesso para implementação de nossas vozes. Já que não temos controle sobre as estruturas capazes de transformar nossas vidas, não participamos proporcional e formalmente dos espaços de decisão, como as arenas dos processos das políticas públicas. Ao mesmo tempo, conhecemos uma potência marginal-periférica que não romantiza nosso carecer, mas a compreende como oposição à opressão da violação da nossa cidadania.
Pois, na lógica de Modulor, há um corpo branco, atlético e masculino no centro de tudo. Ele exclui os corpos negros, das mulheres, dos LGBTs, das pessoas com sobrepeso. Esta lógica nos hierarquiza no imaginário, nas relações de poder e nas cidades instituindo um dentro e um fora de lugar.
Temos tanto a aprender com Grada Kilomba para o direito à cidade, quando nos fala dos corpos que não podem pertencer e dos corpos pertencentes a todos os lugares. Na Europa, no sul, no leste, no oeste, no centro, assim como na periferia. Apropriados e em casa, em todos os lugares.
Assumir o modus operandi das relações e dos discursos territoriais e sociais é dolorosamente potente. Dolorosa, porque faz lembrar o passado e presente no lugar da exclusão territorial e o silenciamento dessa narrativa faz com que nossas produções, embora científicas, tenham quase um tom de desabafo.
Potente, porque a experiência incorporada do que é a cidade faz que com que os corpos fora de lugar - ditos inapropriados - se movimentem, sentindo o peso da não neutralidade do espaço, e assim o questionamos, com perguntas nunca sonhadas ou antes pensadas. Provocamos a cidade a ser o que não foi planejada, no projeto inicial, na concepção do ideário. Nós a reinventamos. Em uma corrida, em um movimento, em uma dança ou ocupação, nas nossas viagens diaspóricas, disputando a rua com afetos e nos recusando a ficar de fora, tiramos tudo do lugar.
Felipe Moreira é arquiteto, urbanista e pesquisador do Instituto Pólis.
Jéssica Tavares é formada em políticas públicas, pesquisadora do Instituto Pólis e conselheira fiscal do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico.
Notas
1. Ao longo da sua história, o Instituto Pólis vem debatendo e (re)pensando o termo Direito à Cidade cunhado por Henri Lefebvre. Só aqui no Archdaily temos dois artigos: um sobre a crise climática e outro sobre espaços públicos. Recomendamos também os artigos de Bianca Tavolari, professora do Insper e do geógrafo David Harvey.
2. 20 de novembro é o Dia da Consciência Negra, data que marca as reivindicações dos movimentos negros pela igualdade racial no país que se concebeu por anos e anos através da exploração de escravizados africanos.
3. IBGE, 2017.
4. Desde 2009, o Mapa da Desigualdade é feito anualmente pela Rede Nossa São Paulo.
5. A rede nossa SP utiliza a nomenclatura ‘negros e pardos’.
6. O mapa da desigualdade de 2019 aponta para 55% dos distritos (53 de 96 distritos) sem nenhum centro cultural, casas e espaços de cultura públicos.
Referências Bibliográficas
BRASIL. Ministério da Saúde. POLÍTICA NACIONAL DE ATENÇÃO INTEGRAL À SAÚDE DA MULHER PRINCÍPIOS E DIRETRIZES. Ministério da Saúde. Brasília, 2011.
IACOVINI, Victor. ECONOMIA POLÍTICA DAS REMOÇÕES FORÇADAS URBANAS: EXPROPRIAÇÃO, ESPOLIAÇÃO E EXPLORAÇÃO NA PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO (O CASO DA COMUNIDADE ALDACI BARBOSA, FORTALEZA/CE) [dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo; 2017 [citado 2019-11-07]. doi:10.11606/D.16.2018.tde-13062017-130017.
ROLNIK, Raquel. GUERRA DOS LUGARES: A COLONIZAÇÃO DA TERRA E DA MORADIA NA ERA DAS FINANÇAS. Editora Boitempo. São Paulo, SP. 2015
SANTOS, Milton. METRÓPOLE CORPORATIVA FRAGMENTADA. São Paulo, Nobel, 1990.
KILOMBA, Grada. MEMÓRIAS DA PLANTAÇÃO: EPISÓDIOS DO RACISMO COTIDIANO. Editora Cobogó. Rio de Janeiro, RJ. 2019.